2004
Exposição "in sinu matris" - 17 impressões a jacto de tinta com 140 cm X 140 cm
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O cerco do corpo
Que a imagem está hoje muito longe de qualquer relação com um dispositivo de verdade, é
uma questão que parece já ultrapassada há várias décadas. Mesmo nos seus inícios a fotografia
foi dotada de um estatuto paradoxal. O que vemos? Uma imagem-documento ou uma
encenação? Esta questão deixou de ser pertinente, numa época em que a imagem está incluída
na retórica de qualquer comunicação, quer esta seja artística, científica ou instrumento de
persuasão publicitária, porque só o contexto e os seus protocolos de recepção nos poderão
fazer decidir.
Assim, a aproximação a uma imagem, ou um conjunto de imagens apela, forçosamente, a uma
progressão, através da qual a nossa gestalt se vai transformando. Na exposição que acompanha
este catálogo, trabalha-se com essa consciência, do carácter não ingénuo da imagem, bem
como da sua versatilidade. Mário Cabrita Gil parte de pequenas imagens fragmentadas de um
corpo humano (ou de vários): orelha, mão, seio, braço, dedos do pé, e é a partir dessas
minúsculas imagens que tudo começa.
No sentido inverso, por exemplo, a um John Copplans — referência obrigatória na fotografia
contemporânea que toma o corpo por objecto — em que a dessacralização do corpo se faz pela
proximidade excessiva, obtida com uma câmara de grande formato, aqui parte-se de uma
imagem muito pequena, e, através da multiplicação digitalmente processada, essa imagem é
repetida até configurar um enorme quadrado de 140cm de lado. O resultado é uma imagem
que, ao primeiro olhar, se assemelha a um padrão têxtil ou de revestimento arquitectónico,
onde apenas se vislumbra um traçado geométrico. A primeira percepção dá-nos, pois, uma
imagem abstracta. O referente desta imagem que percebemos não é um objecto, uma coisa,
mas uma outra imagem, trabalhada em computador, ou, mais do que uma imagem, uma
construção imagética. Mário Cabrita Gil convida-nos assim, através de uma “pós-imagem”, a
uma reflexão sobre o pós-humano.
Porquê? Qual o sentido deste conjunto de imagens-montagens? Ao passarmos os olhos por
estes enormes “quadros”abstractos, e à medida que nos aproximamos e finalmente
descortinamos a “matéria” de que são feitos, somos atravessados por um sentimento de morte
inevitável. A fragmentação gera aqui, reforçada pela cor crua e pela repetição exaustiva, uma
perda do sentido de totalidade e de percepção subjectiva da identidade que sustenta a imagem
do corpo, de qualquer corpo. O artista convida-nos a reflectir sobre a nossa condição de
mortais, sobre a dialéctica vida-morte que a consciência humana, a partir do século XX, se tem
ocupado em recalcar. Deste modo, a insistência na repetição fragmentária de partes do corpo,
que se perdem e esvaziam num padrão abstracto, mais não faz que reiterar, não uma euforia
narcísica mas o seu inverso. Numa época em que a cultura de massas se ocupa em denegar a
morte, o fim inevitável do ser, através de uma aceleração eufórica do tempo, é somente no
campo das artes que nos é permitido pensar sobre esse aspecto da condição humana desde o
início rejeitado pela consciência.
Por outro lado, esta série de imagens remete-nos igualmente para a constatação do
sentimento de pavor que caracteriza o mundo contemporânea face à corporalidade, à ideia de
que a sua identidade é indissociável de uma matéria corruptível, sujeita ao tempo. De alguma
forma é como se aqui estivessemos diante um memento mori, o contraponto barroco da
“vanitas” face ao mundo do efémero. A presença do corpo, desfigurada como nos surge nestas
imagens remete, justamente, para essa relação com a percepção do corpo como objecto
separado do sujeito, que este analisa, ama, rejeita, com o qual se angustia, já que é a parte de
si que está marcada pelo tempo. Não é por acaso que o tema do duplo e do espelho se
tornaram tão centrais na cultura ocidental a partir do século XX ( e mesmo do final do século
XIX): o duplo, por mais terrífico que seja, é sempre uma hipótese de continuidade do Eu, uma
forma de o sujeito se subtrair ao tempo e à ideia de fim. Numa outra dimensão, o duplo é
inevitavelmente um écrã consciencializador da solidão individual, e da perda de sentido que
essa consciência acarreta.
Um segundo pólo da exposição, que consiste numa instalação de 5 imagens e som (do bater do
coração), complementa esta série. Estas imagens foram obtidas através da exposição do corpo
do artista num aparelho de ressonância magnética (tecnologia usada na semiologia médica),
resultando em cinco poses diferentes, consoante a rotação do corpo. O facto de aqui as
imagens serem, naturalmente, a preto e branco, e serem vistas numa semi-obscuridade,
acompanhadas do som do bater do coração, recria um ambiente intra-uterino.
Podemos agora compreender a articulação dos dois pólos da exposição: enquanto a primeira
série nos remete para a dessacralização do corpo e para a ameaça de desintegração que está
metaforicamente contida na diluição da referência da imagem (o corpo) numa imagem
abstracta, a segunda encerra-nos no ciclo de vida, utilizando o bater do coração como metáfora
da temporalidade.
De alguma forma, a saída aqui apontada não deixa muitas alternativas para a questão do
sentido, a única questão realmente importante na história da vida humana: há um nascimento e
uma morte, e o único modo de encontrar o sentido na relação prosaica que mantemos com o
mundo é superar a alienação que está implícita…nessa mesma busca do Sentido.
A forma estética encontrada por Mário Cabrita Gil neste projecto revela precisamente essa
luta, esse conflito pelo sentido vivido minuto a minuto no mundo contemporâneo, cercado por
imagens onde a morte é simultaneamente afirmada e negada, conduzindo o homem numa fuga
para a frente. Mas não há para onde fugir — do corpo.
Margarida Medeiros
Lisboa, 25 de Setembro de 2004