Mário Cabrita Gil
INTER SOMNIA INSOMNIA
ANOS 2000
res extensa ou corpo máquina
inter somnia insomnia
do espaço e do tempo - instalação
do espaço e do tempo - vídeo
making of do espaço e do tempo
in sinu matris - instalação
in sinu matris - texturas
horizont(e) / documentário
cidade reinventada
sombras
o entardecer em alfama
13 artistas | arte digital
instalação - golfinhos
XIV bienal de cerveira
on europe
discursos - IV
ANOS 1990
ANOS 1980
OUTRAS EXPO 1980
BIOGRAFIA
2014
INTER SOMNIA INSOMNIA
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Sobre o retrato do artista na eminência de um evento…
Inter Somnia Insomnia é o título que Mário Cabrita Gil deu a este conjunto de fotografias a
cores, em grande formato, que são auto-retratos do artista exibindo toda a parafernália de
aparelhos e eléctrodos adesivos necessários para a realização de um estudo poligráfico do
sono, estudo onde se procuram detectar anomalias que ocorrem durante o sono.
O artista tem uma longa carreira ligada ao cinema e à fotografia, tendo começado como
operador de câmara e director de fotografia em 1970 e tendo iniciado a sua longa lista de
exposições fotográficas em 1979. A par da sua carreira profissional nestas áreas, nunca deixou
de, paralelamente, expor a sua obra fotográfica, onde revelou as suas preocupações artísticas,
num trajecto diverso mas coerente. No seu espectro de interesses destaca-se o retrato, como
em Idade da Prata (1986), Imagem das Palavras (1991), 30 retratos de mulheres (1998) ou
em Entardecer em Alfama (2000), o corpo, como em Contacto (1997) ou Discursos (1999) e
o corpo transfigurado pelas novas técnicas imagiológicas, como em in sinu matris (1994) ou
em do espaço e do tempo (2009).
O retrato, e em particular o rosto, é um objecto clássico dos fotógrafos, porque o rosto é
portador duma qualidade paradoxal: por um lado é a afirmação da singularidade de cada
indivíduo, transporta nas suas rugas, nas suas cicatrizes, no relevo das suas concavidades e
saliências, a memória do tempo e as marcas do percurso vital de cada pessoa, dando, através
da transparência dos olhos a ilusão de podermos espreitar a alma e alcandorando-se a uma
dimensão sagrada através da sua capacidade de, diante do espelho, poder prefigurar a morte,
mas, por outro lado, o rosto é opaco, enganador, ambíguo, podendo induzir uma realidade e o
seu contrário, ocultando a verdade única, misteriosa e impenetrável que cada pessoa
transporta dentro de si.
Mais cedo ou mais tarde o auto-retrato acontece em muitos artistas, alguns dizem que por
motivação narcísica, eu penso que muitas vezes acontece porque o nosso rosto é o que está
mais à mão, aberto à tortura sem termos que pedir licença, funcionando como uma ferramenta
para transmitir algo que nos acudiu no escrutínio sensível que os artistas mantêm, em
permanência, da realidade que nos cerca. Às vezes demoramos mais na observação do nosso
rosto e temos mais tempo para nos espantarmos com a estranheza de uma luz, duma
expressão ou de uma encenação temporária. Nestas alturas, a superfície (surface em francês)
do nosso rosto transforma-se numa película reveladora que impressiona a nossa sensibilidade e
desperta a pulsão criativa.
Creio que terá sido isto que Mário Cabrita Gil descobriu quando se olhou ao espelho, depois de
lhe terem sido instalados todos os mecanismos de monitorização que o exame complementar
implica. A invocação de um homem bomba na eminência de se fazer explodir, o fantasma de
estar ligado à máquina, o que normalmente não augura nada de bom, a semelhança com
instrumentos de tortura, a visão de um Deus Ex-Machina, expressão da superação da história e
da mortalidade, propagada pelos ciberfilósofos ciberfuturólogos, a armadura para descer ao
abismo dos nossos pesadelos, a fragilidade e caducidade da nossa matéria, a angústia da
descoberta de um rombo na fantástica complexidade do nosso organismo vivo, tudo isto ou
outra coisa qualquer pode ter despertado o fotógrafo para pegar na máquina e fazer-se
retratar naquele momento.
Para a eficácia desta obra contribui a escala e alguma dimensão pictórica que resulta do
tratamento digital do fundo, onde se multiplicam uma miríada de micro-retratos, numa
estratégia que o artista já tinha usado em obras anteriores, como em in sinu matris.
Se a era digital veio acentuar a desmaterialização da obra de arte a fotografia digital em
particular, veio expandir a possibilidade de manipulação da realidade até aos limites da nossa
imaginação, apagando, desintegrando, distorcendo, multiplicando, simulando, inserindo, criando
formas nunca vistas ou criando novas realidades a partir de pixels abstractos, em qualquer dos
casos ampliando exponencialmente os recursos expressivos dos artistas na criação de novas
ficções. Citando Azis e Cucher: "Cada imagem, cada representação, é agora uma fraude
potencial e a simulação é a única verdade em que podemos confiar"
Se a fotografia é a interface entre o sujeito e o mundo que o rodeia, como refere Regis Durand,
a imagem fotográfica processada digitalmente é a interface entre o meio analógico e o digital,
resultando num suporte tão radicalmente diferente que Timothy Druckey lhe chama imagem
pós-fotográfica.
Tudo é justificável em função da intenção última, que é universal à condição de artista: fazer-
nos ver para lá da pele visível da realidade, fazer-nos compreender, através dos sentidos, algo
que está para além do dizível, atingir-nos no punctum de que falava Roland Barthes e, dessa
maneira, engrandecer um pouco a nossa capacidade de ver e entender o que está à nossa volta
ou a nossa própria natureza.
Luís Campos
Lisboa, 1 de Outubro de 2014